A historiadora apaixonada por Homeopatia – Parte 1

Sumário

A historiadora Eneida Nogueira é, por definição de seus próprios colegas, uma “enciclopédia ambulante” quando o assunto é a história da homeopatia. Eneida é professora da disciplina “História da Homeopatia” do Curso de Especialização em Homeopatia para médicos, farmacêuticos, dentistas e veterinários do Instituto Homeopático e de Práticas Integrativas de Ribeirão Preto (IHPI) e já atuou como professora da mesma disciplina do Instituto Homeopático François Lamasson. (de 1996 a 2006).

Mestra em Ciências pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da USP (Universidade de São Paulo), essa ribeirão-pretana, que defendeu sua dissertação na área de História da Medicina e documentos históricos, é verdadeiramente apaixonada pela história da homeopatia.

Em entrevista à Homeopatia Brasil, Eneida contou um pouco sobre como começou essa relação com a história e com a homeopatia e o que fez ela se apaixonar pelo tema e pela história de Samuel Hahnemann, da qual ela é profunda conhecedora.

Eneida fala de Hahnemann com a familiaridade de antigos conhecidos. Ela sabe tantos detalhes de sua vida profissional e pessoal, que discorre sobre isso de maneira que nos leva a conhecer melhor esse personagem histórico que foi um tanto quanto controverso. “Samuel Hahnemann foi um prodígio, uma daquelas pessoas que vêm ao mundo para fazer a diferença… Mas ele não era uma pessoa fácil para se lidar, como todos aqueles que não se encaixam nos padrões de sua época”, disse Eneida, ao explicar por que Hahnemann, apesar de todo o conhecimento e descobertas importantes era tão perseguido. “Em seus escritos, Hahnemann atacava abertamente os meios terapêuticos utilizados naquele período, isso já lhe angariava uma forte oposição”, disse Eneida.

Veja abaixo a primeira parte da entrevista. A segunda parte da entrevista você pode ler clicando aqui.

Como começou sua relação com a Homeopatia?

Toda a minha vida profissional esteve relacionada com a Homeopatia. Minha relação com a Homeopatia começou em 1980, trabalhando com o dr. Izao Carneiro Soares, por vários anos. Depois de algum tempo, já formada em História, o dr. Izao me ofereceu um cargo no Museu de Homeopatia na Instituição da qual ele foi presidente vitalício. Permaneci neste trabalho até o ano de 2006, quando me desliguei deste instituto para fazer uma pós-graduação em História. Em 2014 retornei à instituição, a convite da nova diretoria que assumiu após a morte do Dr. Izao e retomei, como professora, as aulas da disciplina História da Homeopatia.

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E o que fez você se voltar para a História da Homeopatia?

Bem! História, de modo geral, sempre foi minha grande paixão! Meu interesse pela História da Homeopatia começou de modo muito natural, considerando o meu tempo de trabalho no Museu de Homeopatia. E para conhecer a História da Homeopatia, leio muito, estudo, pesquiso. Participei de eventos, viagens em busca de material histórico etc., mas o meu conhecimento em História da Homeopatia, de fato, eu devo a uma pessoa, que eu considero que foi, pelo menos no Brasil, o maior conhecedor da História da Homeopatia: O Dr. Izao Carneiro Soares, com quem trabalhei por quase 30 anos. A ele o meu respeito, a minha gratidão e a minha homenagem!!!

O que significa a Homeopatia para você?

A Homeopatia para mim significa amor ao próximo! Eu sou muito envolvida com a história de Samuel Hahnemann. A descoberta da Homeopatia foi, para Hahnemann, um ato de amor! Ele não concordava com os procedimentos utilizados pela medicina do seu tempo e buscava meios mais racionais de cura, meios seguros que lhe dessem a certeza de não lesar o seu semelhante. Existia nele um senso de dever muito forte com relação ao sofrimento dos seus pacientes. Então, eu considero que sua busca por este meio natural e não invasivo de cura foi, antes de qualquer outro interesse, um ato de amor.

Quem foi Samuel Hahnemann?

Christian Friedrich Samuel Hahnemann, nascido em 10 de novembro de 1755, foi um prodígio, uma daquelas pessoas que vêm ao mundo para fazer a diferença, para trazer algo novo e captar uma ideia que já está pronta, esperando a pessoa certa para transformá-la em realidade no mundo material.

Como começou a história de Hahnemann com a Homeopatia?

Começou muito cedo, com a insatisfação dele com os meios de cura utilizados na época, que seguiam ainda a terapêutica galênica. Galeno foi médico em Roma no período do império. É uma figura muito importante na História da Medicina e da Farmácia. Galeno foi um continuador da medicina hipocrática, cujos métodos de tratamento seguiam os ditames da terapia humoral, ou seja, a eliminação do humor exacerbado, na tentativa de recuperar o equilíbrio perdido.

E quais eram esses meios de cura utilizados na época com os quais Hahnemann não concordava?

Os métodos para a eliminação dos componentes humorais exacerbados eram as sangrias principalmente, através de cortes e de aplicações de sanguessugas e eméticos, purgantes, sudoríferos, diuréticos etc. Hahnemann não concordava com esses meios. Ele os considerava muito debilitantes para serem aplicados em pacientes que já estavam suficientemente enfraquecidos pela enfermidade.

E qual foi a maneira que ele encontrou para lidar com isso?

Neste período, final do século XVIII, o mundo estava em efervescência, as descobertas marítimas, novas rotas, novas terras, um enorme arsenal medicamentoso chegando à Europa apresentando novidades, aumentando consideravelmente as possibilidades de elaboração de compostos, cuja ação das substâncias envolvidas ainda era desconhecida.

Isso causava em Hahnemann um grande sofrimento, ele não se conformava em ter de utilizar esses métodos que ele considerava obscuros e prescrever medicamentos cuja ação dentro do organismo humano ainda era desconhecida e, com receio de prejudicar seus pacientes, ele resolveu abandonar a prática da medicina.   

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Ele abandonou a prática da Medicina?! E a Homeopatia?

A Homeopatia surgiu a partir desta decisão de Hahnemann de desistir da clínica. Desde então, ele passou a sobreviver em condições muito simples, quase precárias, com sua família. Resolveu trabalhar como tradutor, escolhia de preferência obras médicas que lhe possibilitavam continuar estudando. Este abandono da prática médica não significou para Hahnemann uma desistência da medicina, mas sim uma recusa a continuar tratando seus pacientes com métodos que ele não aprovava.

E como surgiu a Homeopatia?

Hahnemann continuava buscando encontrar meios racionais de cura, meios não lesivos e confiáveis! E então, em meio a um dos seus trabalhos, quando ele traduzia a obra Tratado de Matéria Médica, de William Cullen, certa afirmação do autor chamou-lhe a atenção. Em capítulo sobre a casca da quina do Peru, o autor argumentava que a quina curava a febre ao fortalecer o estômago do doente pelas suas propriedades amargas e adstringentes. Hahnemann não concordou com este enunciado e resolveu experimentar a quina nele mesmo. Seu propósito era tentar descobrir qual era a atividade da substância em um organismo são.

E como ele fez isso?

Gozando de perfeita saúde, ingeriu certa quantidade de quina pura e, a partir de então, passou a anotar detalhadamente todos os sintomas produzidos em seu organismo. Depois de alguns dias de experimentos, ele concluiu que “a doença pode ser curada pelo medicamento que é capaz de produzir seus sintomas no organismo são”. Surgia assim o princípio estrutural da Homeopatia: a Lei dos Semelhantes, Similia, similibus curentur”.

E depois de descobrir a Homeopatia ele voltou a clinicar?

Sim, após um longo tempo de pesquisas com outras substâncias naturais também, ele apresentou o seu trabalho para a comunidade científica da sua época e, sim, retomou sua clínica utilizando o método homeopático.

Por que Hahnemann foi tão perseguido?

Bem, em primeiro lugar podemos dizer que ele não era uma pessoa fácil para se lidar, como todos aqueles que não se encaixam nos padrões de sua época. Em seus escritos Hahnemann atacava abertamente os meios terapêuticos utilizados naquele período, isso já lhe angariava uma forte oposição, e muitos médicos não aceitaram o método homeopático, preferiram continuar aplicando os meios tradicionais de cura.  

Ele mudou-se várias vezes, fale um pouco sobre isso.

Ah! Hahnemann era um espírito irrequieto, não ficava muito tempo no mesmo lugar, peregrinava de cidade em cidade e, às vezes voltava para cidades nas quais já tinha morado, como, por exemplo, Leipzig, onde ele morou 3 vezes, Dessau, 2 vezes. Ao todo ele morou em 24 cidades e mudou-se 27 vezes, isso em termos conhecidos né!?

Em algum momento o trabalho de Hahnemann foi amplamente aceito?

Bem! Amplamente aceito é difícil afirmar! Penso que hoje sim, o trabalho de Hahnemann está começando a ser amplamente aceito.

Em sua época, ele sempre sofreu a oposição de grande parte de seus colegas contemporâneos, mas podemos dizer que seu trabalho foi muito bem recebido por grandes grupos e em diversos locais, nos quais ele adquiriu vasta clientela, como a França por exemplo; Hahnemann foi muito bem recebido pelos homeopatas franceses, apesar de ter também lá muitos opositores, especialmente os médicos ligados à Universidade de Paris. Entretanto, isso não foi um problema para a enorme clientela que ele angariou lá, nem para o incontável número de discípulos que ele agrupou junto de si.

 E a vida pessoal de Hahnemann, como pode ser definida?

Hahnemann era um homem surpreendente! Era polivalente! Poliglota, falava 11 idiomas; foi médico, químico, herbalista, tradutor, escritor, profundo conhecedor de mineralogia. Existem algumas informações de que Hahnemann teria se correspondido com o nosso ilustre José Bonifácio no Brasil, também apaixonado pelo estudo dos minerais, no entanto, eu já procurei registros dessas correspondências e não encontrei. Ministrou aulas na Universidade de Leipzig. Era um mestre, porque teve uma enorme quantidade de discípulos, tanto na Alemanha quanto na França.
Casado com Johanna Leopoldine Henriette Küchler, com quem teve 11 filhos. Henriette morreu em 1830 e alguns anos depois ele casou-se novamente em segundas núpcias com a francesa Marie Melanie d´Hervilly.

Qual a importância de Melanie para a Homeopatia?

Hummm! E vamos colocar importância nisso hem!? Bem, agora eu vou dar aqui a minha opinião, porque existem controvérsias. Mas eu acho que a Melanie desempenhou um papel extremamente importante não só na vida do Hahnemann, mas também na História da Homeopatia. E para resumir tudo que poderia ser dito aqui, eu vou direto ao ponto que, em minha opinião, é fundamental para a História da Homeopatia: ela levou Hahnemann e sua descoberta para Paris!

E na sua opinião, qual foi a importância disso?

Eu penso que a Melanie estava predestinada na vida do Hahnemann. Depois de todo o trabalho dele, sua luta em prol do método homeopático, já com idade avançada, estava mais compassada, já não se importava mais com as críticas dos seus opositores, já estava deixando que seus discípulos respondessem…

A chegada de Melanie lhe trouxe um novo ânimo, aquela francesa agitada, vibrante, trazia consigo um entusiasmo, não só pela Homeopatia, mas também pelo seu descobridor. Ao casar-se com ele, ela entendeu que a Homeopatia e, principalmente o seu criador, tinham que estar em Paris. Paris era, na época, considerada o centro cultural da Europa, as grandes novidades que surgiam, de modo geral, saíam de Paris para o mundo. Ela achava que um gênio da grandeza de Hahnemann tinha que estar em Paris. E ela o levou para lá! E, de fato, a Homeopatia floresceu em Paris.

Continua na Parte II

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